IDEIAS, ATITUDES E CONTRADIÇÕES
Ator:
Nós somos os inseguros.
Ator:
E nossa tremenda insegurança se faz presente em todos os momentos. Ela nos obriga a fumar, a beber, a agredir, a dissimular.
Ator:
Já repararam como andamos e falamos? Sempre escondidos atrás de paletós, barbichas, bonés, óculos escuros.
Ator:
Temerosos, não sabemos o que fazer das mãos, andamos de braços cruzados, mãos no bolso ou na cintura ou para trás.
Ator:
Nunca olhamos nos olhos: temos medo.
Ator:
Nós inventamos a máscara, o testa-de-ferro, os guarda-costas, os ca-pangas.
Ator:
Somos os servos devotos da prudência. Fazemos dos pequenos riscos os maiores empecilhos. Para nós foi inventada a expressão "tempestade em copo d'água".
Ator:
Somos os que introduziram os dispositivos de segurança. Criamos os cofres, as fechaduras, os segredos, os carros blindados e as apólices de seguro.
Ator:
Marchamos atrás nas fileiras dos exércitos.
Ator:
Nosso instinto de conservação exagerado afasta qualquer hipótese de uma exposição (nossa) ao perigo.
Ator:
Mas, apesar de nossa imensa covardia, somos suscetíveis de atos repentinos de coragem.
Ator:
Temos complexo de perseguição (é próprio do neurótico ter idéia fixa).
Ator:
Temos complexo de feiúra, de gordura, de magreza, de culpa, de superioridade, de inferioridade. Temos complexo de termos complexo.
Ator:
Nós somos a mediocridade.
Ator:
Envergamos armaduras reluzentes, como a vaidade e o orgulho, apenas para revestir o profundo desprezo que inconscientemente sentimos por nós mesmos.
Ator:
É gente da nossa espécie que compra comendas: procuramos despudoradamente as honrarias.
Ator:
Somos superficiais. Todavia, sentimos irresistível necessidade de nos mostrarmos brilhantes e eruditos.
Ator:
Somos aqueles freqüentadores assíduos de conferências, concertos, vernissages, que — a bem da verdade — não entendem nada de nada, mas que como pavões enfatuados, exibem ostensivamente suas críticas.
Ator:
Sentimos necessidade de ser presunçosos, pedantes, prolixos, narcisistas. Acreditamo-nos os perfeitos, os gênios, os puros, os bons.
Ator:
O neurótico, se é tagarela, dificilmente saberá ouvir; exige atenção absoluta para o que diz, mas só ouve quando lhe convém.
Ator:
Se somos indecisos? Talvez. Pode ser que sim, pode ser que não, quem sabe?
Ator:
Somos incapazes de acreditar firmemente em qualquer coisa. Somos aqueles que sabem de tudo um pouco, sem se aprofundar em nada.
Ator:
Somos instáveis e sem convicções.
Ator:
Nós somos fúteis.
Ator:
Vivemos a fugir de nós mesmos.
Ator:
De nossa autoria são as convenções sociais.
Ator:
Nós inventamos a calúnia.
Ator:
Nós inventamos o despeito.
Ator:
Nós inventamos a inveja: somos o menino pobre que inveja o rico. Somos o menino rico que inveja o pobre.
Ator:
Somos comodistas, mas, devido à nossa flexibilidade, sabemos nos adaptar a qualquer situação.
Ator:
Nós somos os enferrujados.
Ator:
Chorávamos por qualquer coisa quando crianças. Hoje, secamos: as lágrimas não nos socorrem mais.
Ator:
Seremos eternos clientes dos psicanalistas, fazendo de seus consultórios nossos balões de oxigênio.
Ator:
Nós somos os seguidores fanáticos do primeiro profeta que aparece e os primeiros a abandoná-lo.
Ator:
Nós iniciamos as seitas.
Ator:
Fabricamos o escudo.
Ator:
Fundamos as sociedades secretas.
Ator:
Inauguramos os clubes fechados.
Ator:
Instituímos a polícia...
Ator:
... para nos prender.
Ator:
Implantamos os códigos e as leis...
Ator:
... mas, apenas nós os transgredimos.
Ator:
Por nós foram feitas as regras dos jogos...
Ator:
... e somos nós os primeiros a trapacear.
Ator:
Somos os inventores do corrimão na escada...
Ator:
... e das cercas nos jardins.
Ator:
Idealizamos o arame farpado ― e somos os únicos a violá-lo.
Ator:
Nós criamos a rotina. E somos seus maiores inimigos.
Ator:
Somos os temerosos cumpridores das leis, e os arquitetos da impunidade.
Ator:
Criamos os horários e as etiquetas aos quais obedecemos cegamente. Estabelecemos a disciplina para cumprirmos como dogma, porque fora dela nos sentimos nus. Mas, nosso maior sonho é desrespeitá-la.
Ator:
Infelizmente, ao menor desvio nossa consciência pesa. Fora da rotina somos indefesos, apesar de a odiarmos com todas as nossas forças.
Ator:
Somos os freqüentadores diários dos confessionários. Nutrimo-nos da culpa.
Ator:
Criados para obedecer, fazemos dos superiores um venerável mito, rematerializando neles a figura dos pais, que não nos criaram para pensar, mas para obedecer.
Ator:
Por causa disto, quando empolgados por alguma crença, somos inclinados a fanatizar: precisamos de símbolos para idolatrar.
Ator:
Mesmo assim, jamais desfraldaríamos bandeiras, empunharíamos estandartes, por nunca acreditarmos completamente em coisa alguma.
Ator:
Somos covardes, prepotentes, traidores, movediços.
Ator:
Somos bajulalores dos fortes e escarnecedores dos humildes.
Ator:
E se o fraco (de quem zombamos) tornar-se de repente poderoso...
Ator:
... Seremos os primeiros a lhe puxar o saco!
Ator:
Somos as criaturas do "Como não, excelência?", "Perfeitamente, doutor!", "O senhor manda e não pede!".
Ator:
Ou, então: "Vai trabalhar, seu bêbado vagabundo, escória, vergonha da raça! Fora, filho de uma puta!".
Ator:
Quando chefiados, subservientes. Quando chefes, tirânicos.
Ator:
Mas... nós somos apegados aos sonhos e aos mitos. Nós somos os de imaginação fecunda.
Ator:
Nós Somos aqueles artistas que procuram na arte a sublimação. E ninguém será tão sensível como nós. Ninguém, como nós, atingirá a genialidade.os neuróticos. Não nos interessa um encontro conosco.
Ator:
Nós esculpimos as bruxas e os fantasmas. Nós escrevemos as lendas, os mais belos contos de fadas e as mais arrepiantes histórias de horror. Nossa delirante imaginação fabricou os duendes, os lobisomens, as mulas-sem-cabeça. Nós inventamos a fantasia — e é nela, para ela e por ela que vivemos.
Ator:
Isto porque fugimos do real: somos incapazes de assumi-lo. Somos aqueles que acreditam na "força implacável do destino", e sempre se fazem de vítimas.
Ator:
Somos todos basicamente tímidos.
Ator:
Ah, mas superada a timidez, assumimos o vedetismo! Desenhamos e vestimos as roupas de cores berrantes e todas as demais extravagâncias no trajar.
Ator:
Somos escravos da aparência.
Ator:
Os lançadores de todas as modas.
Ator:
E seus mais rastejantes e obstinados seguidores.
Ator:
Somos aqueles em que faltam parafusos.
Ator:
Somos aqueles em que o miolo é mole.
Ator:
Somos as pessoas dos extremos: somos a própria contradição.
Ator:
Somos o Bem e o Mal. Ao mesmo tempo em que edificamos o progresso, inventamos a Bomba. Damos com a esquerda e tomamos com a direita. Matamos e mandamos flores. Batemos e acariciamos.
Ator:
Temos sede de comando — e medo de assumi-lo.
Ator:
Nós somos conservadores — e ao mesmo tempo, ansiosos por inovações.
Ator:
Detestamos a agressão física — e nos sentamos à primeira fila nos campeonatos de boxe.
Ator:
Atravessamos o horário de trabalho sonhando com a paz do lar. Ao terminá-lo, corremos para casa. E em casa, frequentemente nos entediamos com a falta do que fazer.
Ator:
Somos a tese e a antítese.
Ator:
Somos os paus de dois bicos.
Ator:
Somos massa mole de modelar...
Ator:
... Extraordinariamente maleáveis, vergáveis, flexíveis.
Ator:
Somos os pais do medo e seus mais temerosos filhos.
Ator:
Amamos as emoções e não temos coragem de procurá-las.
Ator:
Somos aqueles que durante a tempestade temem o raio; mas sempre acreditam que ele dará preferência à casa do vizinho.
Ator:
Também somos os sádicos e masoquistas. Somos o sim e o não. E somos a alienação.
Ator:
Somos a "aniquilação do eu" da Idade Média e paradoxalmente, profundamente egoístas.
Ator:
Nosso idealismo utópico é freqüentemente embaraçado pelo nosso racionalismo exagerado. E nossa racionalização é tumultuada por nosso idealismo sonhador.
Ator:
Nós inventamos a preguiça e paralelamente somos os introdutores do automatismo, da máquina, do relógio — uma de nossas bíblias.
Ator:
Temos imensa piedade de nós mesmos e somos inclinados a nos apiedar e a nos comover profundamente com o drama dos outros. No entanto, podemos da mesma forma não ter a mínima piedade de alguém: somos incoerentes.
Ator:
E somos a própria obsessão.
Ator:
Somos os que passam a semana inteirinha pensando na festa de sábado. Durante a festa, não conseguimos desfrutá-la, pensando obsessivamente no que vai ser de nós quando a festa acabar.
Ator:
No dia de hoje uma angústia nos corrói: a de tentar adivinhar o que será o dia de amanhã.
Ator:
E além disso tudo, somos volúveis:
Ator:
Somos os que trocam de carro a cada ano; a cada ano de casa; a cada minuto de idéia.
Ator:
E somos insaciáveis, os do "venha a nós". Acreditamos que unicamente para nós o universo foi criado.
Ator:
Não temos escrúpulos. Não medimos.
Ator:
E agora, sabendo de tudo o que somos e de como somos, não encontramos o caminho para deixarmos de sê-lo.
Ator:
Procuramos uma mulher... Um homem... Apenas uma pessoa que não seja como nós.
Marcos Resende - Varginha, 1968