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Marcos Resende Dramaturgia

Marcos Resende Dramaturgia

Convenção dos Neuróticos

Dramaturgia 01.jpg 

Índice Dramaturgia ◦ Índice Geral
 

Movimentos

 

PRIMEIRO MOVIMENTO
A Criação

SEGUNDO MOVIMENTO
As Relações com o Sexo Oposto

TERCEIRO MOVIMENTO:
As Relações com a Sociedade

QUARTO MOVIMENTO:
As Diversões

QUINTO MOVIMENTO:
Idéias, Atitudes e Contradições

 
Primeiro Movimento

A CRIAÇÃO

 

Ator:
Nós somos os filhos primogênitos, irmãos mais velhos, ou filhos únicos de famílias em que o processo de procriação não teve continuidade.

Ator:
Somos aqueles filhos criados em estufas. Durante a infância, guardados carinhosamente do contato com a terra, com a rua, com o ar puro, com outras crianças. Fomos criados com leite, desinfetantes e agasalhos. Com dois banhos por dia e com babás graves e severas.

Ator:
Nascemos de pais ocupados com o trabalho. Demasiadamente ocupados. De pais que não conheceram o riso, a alegria, ou que nunca aprenderam a brincar. Desde pequenos comemos em mesas cerimoniosas. Nossos companheiros e conversas sempre foram adultos.

Ator:
Fomos cuidadosamente resguardados dos perigos. A responsabilidade nos foi sempre imposta como sagrada. Aprendemos a temer a aventura e a nos movermos timidamente presos ao chão. A vida infantil, a puerilidade e as travessuras foram de nós eliminadas à força de grossas correias de couro.

Ator:
Somos aquelas crianças que sempre temeram o que havia além da porta da rua, e que da vidraça da janela sonharam em visitar o horizonte.

Ator:
As histórias de fadas das amas-de-criação exaltaram nossa faculdade de sonhar; e suas histórias do sobrenatural fantástico sedimentaram-se em nosso subconsciente em formação, provocando terríveis pesadelos e noites de ansiosa insônia.

Ator:
Quando crescemos um pouco, fomos levados pelos pais ao cinema para assistirmos a filmes de violência. Conhecemos o poder da arma que mata; e em nossa adolescência, ganhamos de nosso pai uma espingarda para matar pombos.

Ator:
Um dia fomos para a escola, e na escola fomos obrigados a tirar sempre o primeiro lugar. Fomos sempre primeiros da classe: gênios fabricados — e odiados pelos colegas. Nós fomos os eficientes objetos de orgulho dos pais, motivo de vanglória perante seus amigos.

Ator:
Era tão grande o nosso medo de perder o primeiro lugar, que nem imaginávamos o que nos aconteceria se tal coisa acontecesse.

Ator:
Nosso falso senso de responsabilidade foi edificado no pavor de fracassar. Víamos nas menores coisas a conquistar, uma dogmática obrigação; e ao menor fracasso sobrevinha uma irremediável sensação de culpa, auto-desprezo... frustração.

Ator:
Passamos toda a nossa idade escolar preocupados em receber um abraço dos pais, ao lhes apresentar os boletins crivados de notas 10.

Ator:
Hoje, temos necessidade de nos apegar a uma figura paternalista a quem fazemos o possível e o impossível para agradar, para dela extrair elogios, arrancar parabéns; seja ela nosso professor, nosso chefe, nosso patrão; sejam as pessoas do meio em que vivemos.

Ator:
Temos necessidade crônica de sermos os primeiros em tudo — E... angústia por sermos tímidos demais para consegui-lo. Precisamos eternamente de empurrões. Fomos ensinados a competir e a odiar perder uma empreitada.

Ator:
Em qualquer trabalho ou empreendimento seremos inconstantes e medíocres se não houver alguém que nos empurre para a frente.

Ator:
Bem dirigidos e inspecionados faremos bem qualquer coisa. Sozinhos nada seremos. Somos massas de modelar que, nas mãos de um chefe, tornar-se-ão anjos ou demônios.

Ator:
Para nós foram inventados a fiscalização e os fiscais. Para produzirmos, precisamos ser constantemente vigiados, orientados. Somos os da barra-da-saia.

Ator:
Fomos criados para obedecer e agradar.

Ator:
Nunca aprendemos a ter confiança em nós mesmos, porque não a tivemos de nossos pais que nos policiavam nas mínimas coisas.

Ator:
Eu sei que meus pais são meus amigos, as pessoas que mais me amam no mundo. Mas, não consigo apagar da minha cabeça a sua imagem de juizes.

Ator:
E hoje, mulheres e homens imaturos que somos; enfermos mentais que nos tornamos; estamos totalmente desqualificados para a vida.

 

Segundo Movimento

AS RELAÇÕES COM O SEXO OPOSTO


Ator:
Na infância, o sexo nos foi escondido pelos pais, com a história da cegonha, e proibido pelo catecismo como objeto de horror e pecado. Na adolescência, nos foi aconselhado pelos médicos como necessidade do corpo.

Ator:
Um belo dia, a menina para mim tomou outro significado. Habituado a encará-la com indiferença durante a infância, na adolescência fui despertado para enxergá-la sedutora. E fui atraído por ela. Pela sua beleza. Pelos seus encantos. Pela sua doçura. Pela sua meiguice. Mas eu já estava condicionado pela neurose. Transformei o namoro em sacramento e a pessoa amada em religião, deusa e altar. Minha imaginação, sempre a produzir sonhos neuróticos e impossíveis, ao invés de aproximá-la de mim, fez dela um ser extraordinariamente perfeito. Divino. Totalmente inatingível.

Ator:
Tirá-la para dançar, num baile, foi um sacrifício e uma proeza, que só consegui à força do álcool.

Ator:
Pegar em sua mão foi uma luta vitoriosa contra minha própria timidez.

Ator:
Nos primeiros dias, fiz de tudo para impressioná-la; para fazê-la acreditar que eu era o melhor do mundo! Dei-lhe muitos presentes e lhe mostrei diversos poemas, que para ela eu havia escrito.

Ator:

Mas, com o correr do tempo, a deusa se humanizou. A musa encantada me desencantou: ela era humana. Normal. De carne e osso. E não o sonho que dela eu edificara. Quando tomei consciência disto, tornei-me frio e indiferente; e ela me deixou.

Ator:
Fiquei inconsolável com a perda, apesar de tudo. Mas, na semana seguinte eu já escolhera entre as moças da cidade, uma outra deusa, que coloquei em outro altar, e da qual me tornei adorador e sumo-sacerdote.

Ator:
Somos aqueles que acreditam amar o mundo, mas que não são capacitados nem para amar a si mesmos.

Ator:
Os neuróticos estão terminantemente desqualificados para o amor.

Terceiro Movimento

AS RELAÇÕES COM A SOCIEDADE


Ator:
Por odiarmos a solidão, somos os que mais ardentemente procuram a vida social. Por nos sentirmos fracos isoladamente, somos os que mais desejam a vida em grupo.

Ator:
Temos total necessidade de adular as outras pessoas, pretendendo com isto que elas nos aprovem. Tremendamente inseguros, sofremos verdadeiro martírio ao saber que alguém disse um pequenino "a" a nosso respeito.

Ator:
Carecemos da confirmação dos outros nas menores coisas. Gostando da cor azul, compramos a roupa amarela, porque... fulano disse.

Ator:
Não sabemos prever, avaliar, medir. Somos aqueles que precisam perguntar antes de sair, se está fazendo frio ou calor. E nunca abandonamos o guarda-chuva.

Ator:
Numa conversa, abdicamos de todas as nossas convicções para não discordarmos de nosso interlocutor. Como se não bastasse, fingimos acreditar e concordar com os maiores absurdos que ele possa nos dizer.

Ator:
Nós somos os megalômanos; criamos pequenos mundos onde reinamos soberanos.

Ator:
Temos necessidade de manter continuamente um séquito de admiradores. Mesmo medíocres, mesmo idiotas, precisamos nos sentir reinando em alguma corte, por menor que ela seja.

Ator:
Tornamo-nos amigos dos nossos incensadores, dos nossos bajuladores. Mesmo notando em seu gesto, nítido propósito interesseiro.

Ator:
Para não perdermos um desses amigos, não hesitaremos em sufocar nossa consciência. Mas nunca perdoaremos a ofensa, a injúria, o desprezo de alguém para conosco.

Ator:
Tememos o diálogo com pessoas de nível superior ou igual ao nosso.

Ator:
Sentimos a angustiosa necessidade de devassar por completo a vida e os pensamentos de cada novo amigo. Por temer o desconhecido, o mistério, precisamos fazer com que tudo nos seja familiar.

Ator:
Temos, no fundo, inveja de todos — e para descarregá-la, a necessidade constante de agredir.

Ator:
Somos aqueles que só se imaginam seguros andando em grupo. Em grupo, sentimo-nos protegidos, fortes, corajosos; contamos bravatas e inventamos atos de valentia.

Ator:
Em grupo, nos dizemos os melhores em tudo, os capazes de qualquer coisa. Libertamos todos os recalques, todas as revoltas. Como nós somos o bem e o mal, nunca se pode imaginar o que, em grupo, poderemos fazer.

Ator:
Basta porém que nos aproximemos de um grupo diferente para perdermos por completo a vontade de brilhar.

Ator:
Temos medo de ousar, mas... não nos sentimos bem a não ser brilhando.

Ator:
Viver em sociedade? Fora de cogitação.
Como esperar que alguém consiga conviver conosco? Nós mesmos não nos suportamos. Mas... odiamos a solidão!


Quarto Movimento

AS DIVERSÕES

Ator:
Nós somos os neuróticos. Não nos interessa um encontro conosco.


Ator:
Para fugirmos à tremenda responsabilidade que é assumir a vida e a condição de seres pensantes, inventamos um ópio: as diversões.


Ator:
E sequiosamente as procuramos, no desespero de ter que estar sempre fazendo alguma coisa.

Ator:
Temos a imperiosa necessidade de manter nossos olhos e bocas ocupados, vinte e quatro horas por dia.

Ator:
Nós inventamos o futebol como ópio das massas e a ele nos atiramos como torcedores fanáticos.

Ator:
Nós inventamos a corrida de cavalos e doentiamente nela apostamos.

Ator:
Somos nós os maiores compradores de discos. Somos os que elevam atores, cantores e atletas à condição de deuses, nossos ídolos.

Ator:
Somos as macacas de auditório que lhes rasgam as roupas. Nossas paredes estão cobertas por suas fotografias. Somos aqueles que se sacrificam para comprar todos os seus discos, todas as revistas; escrevemos montanhas de cartas – e no seus aniversário lhes mandamos bolos, faixas, presentes.

Ator:
Para nós foram planejadas as novelas de rádio e televisão. Elas nos viciam.

Ator:
É nosso o baralho e freqüentamos diariamente videogames, videopôquer, bilhares, bicheiros, roletas...


Ator:
Inventamos a diversão fútil e fácil, e nos atiramos cotidianamente, a consumi-la. Somos os pais de todas as diversões alienadoras, em que não se precisa usar o raciocínio.

Ator:
A indústria cinematográfica fabrica em massa engodos para saciar nossa sofreguidão, poço sem fundo.

Ator:
Para alimentar nossa voracidade, gráficas imprimem toneladas de fotonovelas — que engolimos sem mastigar.

Ator:
Somos os mais facilmente influenciados pela propaganda. Inconsciente e freqüentemente repetimos toda espécie de bordões publicitários. Para nós foram criados os slogans — e o condicionamento pela sugestão.

Ator:
Nós criamos o fanatismo e o vício. Somos nós os que enriquecem as fábricas de cigarro, as charutarias...

Ator:
Somos ávidos tomadores de comprimidos estimulantes.

Ator:
Temos os nervos à flor da pele.

Ator:
Somos os consumidores de álcool e buscamos continuamente as ilusões.

Ator:
Nós nos divertimos imensamente...

Ator:
... mas, sem o álcool, o que seria de nós?

Ator:
Estamos sempre mastigando: pipoca, chicletes, doces, bombons.

Ator:
Estamos sempre ingerindo: maconha, ópio, cocaína...

Ator:
Somos os maiores foliões de carnaval, mas não nos atrevemos a dar um passo no salão sem o tóxico ou sem a máscara.

Ator:
Somos os promotores de bacanais e orgias. Fabricamos o esquecimento e traficamos a alegria.


Ator:
Ao acordarmos, mal nos levantamos, já ligamos o rádio. Só por ligá-lo, nem sempre o ouvimos: é que não suportamos nossa companhia.

Ator:
Não conseguimos nos concentrar em nada, e quando tentamos, o pensamento se desvia por inúmeros caminhos.

Ator:
Somos os colecionadores: de moedas, de selos, de insetos, de flâmulas, de autógrafos, de...

Ator:
Somos os caçadores de pombos, jacarés, macacos, bem-te-vis... Nós nos divertimos matando!

Ator:
Somos turistas perpétuos, excursionistas crônicos em permanente safári pelo mundo...

Ator:
voando, correndo, mergulhando...

Ator:
adormecendo, rindo, copulando...

Ator:
mordendo, sorvendo, lambendo, ingerindo, aspirando!

Atores:
E explodindo!

Atores:
Delírio!!!

Atores:
Gargalhando!

Ator:
É o prazer, é o orgasmo, é a loucura!

Ator:
É o fastio, é o enfado...

Atores:
... é o boceeejo!

Ator:
Buscamos a Festa sem Fim, mas até agora só encontramos o Tédio Infinito.

Ator:
Ainda assim, juramos estar nos divertindo! É que o medo de admitir nossa infelicidade nos obriga a acreditar que...

Atores:
... somos felicíssimos!!!
 
Quinto Movimento

IDEIAS, ATITUDES E CONTRADIÇÕES


Ator:
Nós somos os inseguros.

Ator:
E nossa tremenda insegurança se faz presente em todos os momentos. Ela nos obriga a fumar, a beber, a agredir, a dissimular.

Ator:
Já repararam como andamos e falamos? Sempre escondidos atrás de paletós, barbichas, bonés, óculos escuros.

Ator:
Temerosos, não sabemos o que fazer das mãos, andamos de braços cruzados, mãos no bolso ou na cintura ou para trás.

Ator:
Nunca olhamos nos olhos: temos medo.

Ator:
Nós inventamos a máscara, o testa-de-ferro, os guarda-costas, os ca-pangas.

Ator:
Somos os servos devotos da prudência. Fazemos dos pequenos riscos os maiores empecilhos. Para nós foi inventada a expressão "tempestade em copo d'água".

Ator:
Somos os que introduziram os dispositivos de segurança. Criamos os cofres, as fechaduras, os segredos, os carros blindados e as apólices de seguro.

Ator:
Marchamos atrás nas fileiras dos exércitos.

Ator:
Nosso instinto de conservação exagerado afasta qualquer hipótese de uma exposição (nossa) ao perigo.

Ator:
Mas, apesar de nossa imensa covardia, somos suscetíveis de atos repentinos de coragem.

Ator:
Temos complexo de perseguição (é próprio do neurótico ter idéia fixa).

Ator:
Temos complexo de feiúra, de gordura, de magreza, de culpa, de superioridade, de inferioridade. Temos complexo de termos complexo.

Ator:
Nós somos a mediocridade.

Ator:
Envergamos armaduras reluzentes, como a vaidade e o orgulho, apenas para revestir o profundo desprezo que inconscientemente sentimos por nós mesmos.

Ator:
É gente da nossa espécie que compra comendas: procuramos despudoradamente as honrarias.

Ator:
Somos superficiais. Todavia, sentimos irresistível necessidade de nos mostrarmos brilhantes e eruditos.

Ator:
Somos aqueles freqüentadores assíduos de conferências, concertos, vernissages, que — a bem da verdade — não entendem nada de nada, mas que como pavões enfatuados, exibem ostensivamente suas críticas.

Ator:
Sentimos necessidade de ser presunçosos, pedantes, prolixos, narcisistas. Acreditamo-nos os perfeitos, os gênios, os puros, os bons.

Ator:
O neurótico, se é tagarela, dificilmente saberá ouvir; exige atenção absoluta para o que diz, mas só ouve quando lhe convém.

Ator:
Se somos indecisos? Talvez. Pode ser que sim, pode ser que não, quem sabe?

Ator:
Somos incapazes de acreditar firmemente em qualquer coisa. Somos aqueles que sabem de tudo um pouco, sem se aprofundar em nada.

Ator:
Somos instáveis e sem convicções.

Ator:
Nós somos fúteis.

Ator:
Vivemos a fugir de nós mesmos.

Ator:
De nossa autoria são as convenções sociais.

Ator:
Nós inventamos a calúnia.

Ator:
Nós inventamos o despeito.

Ator:
Nós inventamos a inveja: somos o menino pobre que inveja o rico. Somos o menino rico que inveja o pobre.

Ator:
Somos comodistas, mas, devido à nossa flexibilidade, sabemos nos adaptar a qualquer situação.

Ator:
Nós somos os enferrujados.

Ator:
Chorávamos por qualquer coisa quando crianças. Hoje, secamos: as lágrimas não nos socorrem mais.

Ator:
Seremos eternos clientes dos psicanalistas, fazendo de seus consultórios nossos balões de oxigênio.

Ator:
Nós somos os seguidores fanáticos do primeiro profeta que aparece e os primeiros a abandoná-lo.

Ator:
Nós iniciamos as seitas.

Ator:
Fabricamos o escudo.

Ator:
Fundamos as sociedades secretas.

Ator:
Inauguramos os clubes fechados.

Ator:
Instituímos a polícia...

Ator:
... para nos prender.

Ator:
Implantamos os códigos e as leis...

Ator:
... mas, apenas nós os transgredimos.

Ator:
Por nós foram feitas as regras dos jogos...

Ator:
... e somos nós os primeiros a trapacear.

Ator:
Somos os inventores do corrimão na escada...

Ator:
... e das cercas nos jardins.

Ator:
Idealizamos o arame farpado
e somos os únicos a violá-lo.

Ator:
Nós criamos a rotina. E somos seus maiores inimigos.

Ator:
Somos os temerosos cumpridores das leis, e os arquitetos da impunidade.

Ator:
Criamos os horários e as etiquetas aos quais obedecemos cegamente. Estabelecemos a disciplina para cumprirmos como dogma, porque fora dela nos sentimos nus. Mas, nosso maior sonho é desrespeitá-la.

Ator:
Infelizmente, ao menor desvio nossa consciência pesa. Fora da rotina somos indefesos, apesar de a odiarmos com todas as nossas forças.

Ator:
Somos os freqüentadores diários dos confessionários. Nutrimo-nos da culpa.

Ator:
Criados para obedecer, fazemos dos superiores um venerável mito, rematerializando neles a figura dos pais, que não nos criaram para pensar, mas para obedecer.

Ator:
Por causa disto, quando empolgados por alguma crença, somos inclinados a fanatizar: precisamos de símbolos para idolatrar.

Ator:
Mesmo assim, jamais desfraldaríamos bandeiras, empunharíamos estandartes, por nunca acreditarmos completamente em coisa alguma.

Ator:
Somos covardes, prepotentes, traidores, movediços.

Ator:
Somos bajulalores dos fortes e escarnecedores dos humildes.

Ator:

E se o fraco (de quem zombamos) tornar-se de repente poderoso...

Ator:
... Seremos os primeiros a lhe puxar o saco!

Ator:
Somos as criaturas do "Como não, excelência?", "Perfeitamente, doutor!", "O senhor manda e não pede!".

Ator:
Ou, então: "Vai trabalhar, seu bêbado vagabundo, escória, vergonha da raça! Fora, filho de uma puta!".

Ator:
Quando chefiados, subservientes. Quando chefes, tirânicos.

Ator:
Mas... nós somos apegados aos sonhos e aos mitos. Nós somos os de imaginação fecunda.

Ator:
Nós Somos aqueles artistas que procuram na arte a sublimação. E ninguém será tão sensível como nós. Ninguém, como nós, atingirá a genialidade.os neuróticos. Não nos interessa um encontro conosco.

Ator:
Nós esculpimos as bruxas e os fantasmas. Nós escrevemos as lendas, os mais belos contos de fadas e as mais arrepiantes histórias de horror. Nossa delirante imaginação fabricou os duendes, os lobisomens, as mulas-sem-cabeça. Nós inventamos a fantasia — e é nela, para ela e por ela que vivemos.

Ator:

Isto porque fugimos do real: somos incapazes de assumi-lo. Somos aqueles que acreditam na "força implacável do destino", e sempre se fazem de vítimas.

Ator:
Somos todos basicamente tímidos.

Ator:
Ah, mas superada a timidez, assumimos o vedetismo! Desenhamos e vestimos as roupas de cores berrantes e todas as demais extravagâncias no trajar.

Ator:
Somos escravos da aparência.

Ator:
Os lançadores de todas as modas.

Ator:
E seus mais rastejantes e obstinados seguidores.

Ator:
Somos aqueles em que faltam parafusos.

Ator:
Somos aqueles em que o miolo é mole.

Ator:
Somos as pessoas dos extremos: somos a própria contradição.

Ator:
Somos o Bem e o Mal. Ao mesmo tempo em que edificamos o progresso, inventamos a Bomba. Damos com a esquerda e tomamos com a direita. Matamos e mandamos flores. Batemos e acariciamos.

Ator:
Temos sede de comando — e medo de assumi-lo.

Ator:
Nós somos conservadores — e ao mesmo tempo, ansiosos por inovações.

Ator:
Detestamos a agressão física — e nos sentamos à primeira fila nos campeonatos de boxe.

Ator:
Atravessamos o horário de trabalho sonhando com a paz do lar. Ao terminá-lo, corremos para casa. E em casa, frequentemente nos entediamos com a falta do que fazer.

Ator:
Somos a tese e a antítese.

Ator:
Somos os paus de dois bicos.

Ator:
Somos massa mole de modelar...

Ator:
... Extraordinariamente maleáveis, vergáveis, flexíveis.

Ator:
Somos os pais do medo e seus mais temerosos filhos.

Ator:
Amamos as emoções e não temos coragem de procurá-las.

Ator:
Somos aqueles que durante a tempestade temem o raio; mas sempre acreditam que ele dará preferência à casa do vizinho.

Ator:
Também somos os sádicos e masoquistas. Somos o sim e o não. E somos a alienação.

Ator:
Somos a "aniquilação do eu" da Idade Média e paradoxalmente, profundamente egoístas.

Ator:
Nosso idealismo utópico é freqüentemente embaraçado pelo nosso racionalismo exagerado. E nossa racionalização é tumultuada por nosso idealismo sonhador.

Ator:
Nós inventamos a preguiça e paralelamente somos os introdutores do automatismo, da máquina, do relógio — uma de nossas bíblias.

Ator:
Temos imensa piedade de nós mesmos e somos inclinados a nos apiedar e a nos comover profundamente com o drama dos outros. No entanto, podemos da mesma forma não ter a mínima piedade de alguém: somos incoerentes.

Ator:
E somos a própria obsessão.

Ator:
Somos os que passam a semana inteirinha pensando na festa de sábado. Durante a festa, não conseguimos desfrutá-la, pensando obsessivamente no que vai ser de nós quando a festa acabar.

Ator:
No dia de hoje uma angústia nos corrói: a de tentar adivinhar o que será o dia de amanhã.

Ator:
E além disso tudo, somos volúveis:

Ator:
Somos os que trocam de carro a cada ano; a cada ano de casa; a cada minuto de idéia.

Ator:
E somos insaciáveis, os do "venha a nós". Acreditamos que unicamente para nós o universo foi criado.

Ator:
Não temos escrúpulos. Não medimos.

Ator:
E agora, sabendo de tudo o que somos e de como somos, não encontramos o caminho para deixarmos de sê-lo.

Ator:
Procuramos uma mulher... Um homem... Apenas uma pessoa que não seja como nós.
 
 
Marcos Resende - Varginha, 1968